
Era um dia comum, como tantos outros. O metrô estava lotado e eu contava os minutos ansiosamente para chegar ao meu destino. A preocupação com a possibilidade de me atrasar para a aula e perder algo importante aumentava, bem como a fila de pessoas atrás de mim. Enquanto eu esperava, ouvi duas pessoas conversando: ‘Alguém se jogou nos trilhos, por isso a demora’ disse uma. A outra, já impaciente, comenta: ‘Uma hora dessas da manhã? Todo mundo tem horário aqui, pelo amor de Deus.’ Dei uma risada discreta, talvez tenha me identificado com a indignação e nervosismo dessa pessoa. Naquele momento, eu também só conseguia pensar nos meus compromissos.
Mas, ao longo do dia, aquela frase ficou ecoando na minha mente.
Quando foi que começamos a normalizar o caos no cotidiano? Quando foi que passamos a colocar a individualidade em primeiro lugar e desconsiderar a coletividade?
O individualismo enraizado na sociedade moderna
O que presenciei no metrô não é uma situação isolada, ela reflete algo maior: uma sociedade moldada por um sistema individualista. Essa lógica, fomentada pelo sistema capitalista, é uma forma de nos doutrinar e ocupar, cegando-nos a toda e qualquer situação que fuja das nossas responsabilidades individuais do dia a dia.
Na sociedade moderna, o individualismo é sempre reforçado, pois cada um é visto como o único responsável por seu sucesso ou fracasso. Aquele velha história da meritocracia, sabe? Como consequência, passamos a deixar o coletivismo de lado, nos tornando ainda mais presos às nossas metas individuais, sempre em busca de um sucesso que, na grande maioria das vezes, não sentiremos nem o cheiro.
Temos que bater ponto no horário correto para evitar risco de demissão, chegar pontualmente às aulas para não reprovar por falta. E quando finalmente saímos dos nossos compromissos, estamos exaustos – sem tempo e paciência para refletir sobre as crises sociais, diplomáticas e ambientais ou como tudo isso tem afetado brutalmente a saúde mental coletiva, portanto, construímos uma apatia ao caos.
A fatalidade que ocorreu naquele dia no metrô foi um empecilho para muitos. A situação, ao menos naquele momento, não trouxe reflexão muito menos empatia. Agora, priorizamos apenas nossos compromissos a ponto de nos tornarmos indiferentes ao sofrimento alheio.
O filósofo Zygmunt Bauman, em seu livro “Modernidade Líquida”, reflete sobre como as relações sociais contemporâneas se tornaram frágeis e descartáveis, o que enfraqueceu nosso senso de solidariedade e responsabilidade coletiva: ‘Na sociedade líquida, a solidariedade se desfaz e a responsabilidade é privatizada.’
O caos normalizado
Esse cenário em que vivemos afeta nossa capacidade de empatia. Passamos a enxergar os problemas sociais – como a pobreza, a violência ou até as tragédias – como algo distante, que não nos diz respeito diretamente.
A apatia diante da violência policial é um exemplo concreto disso. A exposição constante a situações violentas – abordagens brutais em periferias, abuso de autoridade, aumento da letalidade policial – nos dessensibilizou. Consumir conteúdos hostis nas redes sociais se tornou rotina. Não ficamos mais indignados, tampouco revoltados. Logo seguimos para a próxima postagem, a barbárie foi normalizada. A cultura da individualidade nos faz acreditar que, se a violência não nos atinge diretamente, ela não é nossa preocupação.
Criamos um distanciamento entre nós e o outro, normalizamos mortes, repressões, tragédias e injustiças. Esse é o ponto central do sistema capitalista: ao construir uma sociedade sufocada pelo individualismo – sem perspectiva e tempo para refletir –, criamos uma sociedade que não luta contra aquilo que a oprime.
Dito isso, volto à cena inicial do metrô, que me causou desconforto por um bom tempo. Talvez aquela cena não tenha sido apenas uma eventualidade, mas um lembrete para resgatar o senso de coletividade que me foi tirado e, por sorte, fazer você, que está lendo, refletir.
Até quando deixaremos a cultura individualista nos anestesiar enquanto o caos se instaura?
