Assédio cotidiano: a manifestação silenciosa do poder masculino.

Hoje, o assunto que vou abordar é delicado. Talvez te faça lembrar de uma situação dolorosa, mas a história que vi nessa manhã me trouxe a necessidade de falar sobre isso.  

Enquanto rolava minha “For You” do TikTok, o vídeo de uma moça apareceu para mim. Era um relato sobre um assédio que ela sofreu:  

“Hoje eu fui assediada dentro da minha própria casa.” 

Resumidamente, um homem — técnico da Vivo — foi até sua casa instalar o Wi-Fi. O assédio começou de forma “despretensiosa”, quando ele precisou passar por ela e colocou uma das mãos ao redor de sua cintura. Ela se assustou, deu um passo para trás, mas seguiu normalmente. O primeiro instinto é a negação. 

 Mas não parou por aí. 

Ao levá-lo até outro cômodo, onde a internet principal estava instalada, ela foi assediada novamente — dessa vez, de forma ainda mais invasiva. O técnico colocou as duas mãos em sua cintura e se aproximou do seu quadril. 

“Naquele momento, eu vi que o assédio não é agressivo, ele não é grotesco. Ele é delicado, ele acontece de um jeito que te faz duvidar se você realmente está vivendo o que está vivendo.” 

Ela empurrou o homem e disse para ele não encostar nela. De forma calma e inocente, ele respondeu: “Calma, é só para não te machucar.” 

Se ele não tivesse se aproximado com más intenções, sua reação imediata teria sido pedir desculpas — mas não foi o que aconteceu. 

Ela cancelou o serviço e pediu para ele se retirar. 

Esse relato me sensibilizou e me fez refletir sobre como o assédio nem sempre vem carregado de violência descarada. Na maioria das vezes, são ações passivo-agressivas do dia a dia que só reforçam a ideia de que homens sempre sentirão que têm poder e domínio sobre o corpo feminino. Muitas vezes, são tão discretas — como no caso da mulher do TikTok — que nos fazem duvidar da situação, nos colocando em confusão mental. 

Muito provavelmente, você já passou por um assédio disfarçado de ação inocente, que te fez pensar: “Será que isso realmente aconteceu ou foi coisa da minha cabeça?”, “Será que a pessoa fez por mal ou foi sem intenção?” e, a pior de todas, na minha opinião: “Será que isso foi grave o bastante para me incomodar ou estou exagerando?” 

“Nada em mim comunicou àquele homem que eu estava disponível, que eu estava aceitando aquilo, que eu estava querendo. E mesmo eu sendo quem eu sou, tendo a formação que eu tenho, sabendo tecnicamente de tudo isso, a delicadeza com que a coisa acontece te faz questionar: será que eu não estou exagerando?” 

O assédio é uma cultura global, especialmente em nosso país, e geralmente só é visto como “considerável” quando causa algum dano físico grave ou envolve situações explícitas de abuso sexual. 

O olhar malicioso no transporte público, o comentário desconfortável de um amigo, o toque invasivo de um chefe — e milhões de outras ações que acontecem todos os dias — também se configuram como assédio. No entanto, em uma sociedade que prega a superioridade masculina, aprendemos a banalizar esse tipo de comportamento, deixando-os passar — mesmo que sejam justamente esses assédios “silenciosos”, disfarçados de inocência, que mais nos perseguem. Afinal: “Será que a pessoa fez por mal ou foi sem intenção?”  

Fonte: Instituto Patrícia Galvão/Locomotiva, 2019.

Esse caso explicita, de forma concreta, como o assédio, na maioria das vezes, aparece nas situações cotidianas. 

Essa ação “despretensiosa” provavelmente será defendida por muitos como apenas uma “investida”, um “flerte” — nunca como assédio. Talvez essa moça nunca consiga uma forma de justiça diante do que aconteceu. Esse homem, muito provavelmente, continuará tendo o mesmo comportamento com outras mulheres. No entanto, ela nunca mais conseguirá receber um prestador de serviço em sua casa ou ficar sozinha com um homem desconhecido sem sentir medo. 

“Depois que ele tentou passar por mim, eu senti, muito delicadamente, muito levemente, as mãos dele na minha cintura e, depois, nas costas, no meu quadril. Não foi forte, não foi violento, não foi agressivo — foi sutil, foi delicado. Eu senti que ele estava querendo testar os meus limites, querendo ver se a investida dele teria algum tipo de aceite, algum tipo de retorno. Se tivesse, ele avançaria.”  

No vídeo, muitas mulheres se solidarizam com o relato da moça e comentam o que ela poderia fazer para evitar esse tipo de situação. Uma delas sugere espalhar pertences masculinos pela casa, deixando implícito que um homem também mora ali — alguém que, a qualquer momento, poderia chegar. 

 Essa sugestão levanta dois pontos importantes: 

1. As mulheres continuam sendo responsabilizadas por evitar o assédio, como se pudéssemos, de alguma forma, impedi-lo sozinhas. 

2. Homens são ensinados a respeitar outros homens, mas a sentir poder sobre o corpo feminino. 

Temos plena consciência de que nossa roupa, nosso comportamento ou qualquer outra coisa que fizermos não criará uma barreira contra o assédio, porque o problema está nos homens — e em como eles são moldados ao longo da vida. Mas, por pressões sociais, sempre acabamos assumindo a responsabilidade de evitar essas situações e nos culpamos quando acontecem, presas ao pensamento: “E se eu tivesse feito diferente?”. 

O assédio que causa dano físico ou evolui para o abuso sexual é revoltante, danoso e merece toda a nossa atenção. Ainda assim, precisamos olhar para os comportamentos cotidianos que nos cercam, nos amedrontam, nos agonizam — tudo de forma muito sutil. Porque, no fim, nunca é sobre como poderíamos ter reagido ou feito diferente, mas sobre como eles sempre encontram novas formas de avançar. 

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